Imagens dramáticas de mortandade de peixes e de botos e relatos de ribeirinhos ilhados, sem conseguir se deslocar por causa do baixo nível dos rios no Amazonas que começaram a aparecer nos últimos dias chamam atenção para a grave estiagem que atinge a região e revelam os impactos que já estão sendo sentidos por causa do aquecimento global. Pesquisadores ouvidos pela Agência Pública acreditam que a combinação entre temperaturas anormalmente altas das águas do Atlântico norte e a ocorrência do fenômeno El Niño agravou a seca e ainda pode ter consequências imprevisíveis.
Os meses de agosto, setembro e outubro – quando ocorre o chamado “verão amazônico” –, são tradicionalmente secos, mas neste ano, de acordo com relato de cientistas que estudam a região, o quadro ficou mais grave, e a estiagem se instalou de um modo mais rápido. O engenheiro ambiental Ayan Fleyshman, que faz o monitoramento dos rios no Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá, conta que a situação é catastrófica.
O Mamirauá relatou na semana passada, em apenas três dias, que cerca de cem botos rosas e tucuxis (um outro tipo de golfinho) apareceram mortos no Lago Tefé, 550 km acima de Manaus pelo rio Solimões, que forma o Amazonas.
“Até agosto o nível do rio estava abaixo da média, mas dentro do esperado. Chegou em setembro, despencou. O nível do Solimões começou a diminuir 30 centímetros por dia, tivemos até de instalar uma nova régua para medir o nível da água. E no Lago Tefé chegamos a medir a temperatura de 39ºC”, relata o pesquisador. “Virou um caldeirão. A média normal é em torno de 30ºC”, diz.
Cientistas ainda estão investigando se as mortes estão relacionadas a essas mudanças, mas eles suspeitam que sim. “Ainda é cedo para afirmarmos a causa deste evento extremo de mortandade, mas certamente está associado ao período de estiagem e à alta temperatura da água do Lago Tefé”, divulgou o Mamirauá em nota. O instituto é um dos principais centros de pesquisa de mamíferos aquáticos da Amazônia.
Fleyshman afirma que a estiagem atual não chegou aos recordes alcançados em 2010, mas a expectativa é que a situação ainda pode piorar. Isso porque, historicamente, os níveis mais baixos ocorrem em meados de outubro. “Ou seja, os rios ainda devem descer mais uns 15 dias e depois têm de retomar. Então esperamos mais um mês de crise, pelo menos.”
O cenário se repete por todo o Estado. Do outro lado de Manaus, o que chamou a atenção foram toneladas de peixes mortos que apareceram na semana passada em Manacapuru. A própria capital do estado vem sofrendo com outro problema associado à seca: a fumaça de queimadas. O Amazonas teve, em setembro, o segundo maior número de focos de incêndio para o mês desde o início do registro histórico, em 1998.
De acordo com o climatologista José Marengo, coordenador-geral de Pesquisa e Desenvolvimento do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), a principal suspeita para a forte estiagem é o anormal aquecimento das águas do Oceano Atlântico, em suas porções tropical e norte – levando baixa umidade para a Amazônia. A temperatura da superfície dos oceanos vem batendo recordes há vários meses.
A isso se soma a ocorrência de um El Niño, o fenômeno de aquecimento das águas do Pacífico. As previsões colocam o El Niño que começou a atuar em meados deste ano como de intensidade moderada a forte. As fortes chuvas que atingiram o sul do país já estão na conta dele. E outro impacto conhecido é de levar mais seca para o Norte e o Nordeste do país.
“Em geral, com o El Niño, os invernos são mais quentes na região centro-oeste, sudeste e sul da Amazônia. A chuva não é muito afetada. Mas o que pode ter acontecido é que o inverno mais quente ajudou a formação de uma bolha de ar seca que impede a chegada de frentes frias. Ou seja, o ar mais quente e o solo seco se retroalimentam, formando como se fosse um domo sobre a região”, explica Marengo.
Já o impacto do aquecimento do Atlântico, ele diz que seria esperado mais para o fim do ano. “Estamos na primavera, então é algo relativamente novo. Nesse sentido é realmente sem precedentes.” Marengo lembra que em 2005 também ocorreu uma seca importante na mesma região, associada ao aquecimento do Atlântico – mas não com temperaturas tão elevadas da superfície dos oceanos quanto agora. Naquela época, porém, a forte estiagem começou mais tarde, em dezembro de 2004, se estendendo até janeiro de 2005. “Desta vez está vindo bem mais cedo.”
Em nota técnica divulgada no fim de setembro sobre as expectativas para o El Niño deste ano, o Cemaden alertou: “Desde maio de 2023, simultaneamente com o desenvolvimento do El Niño, observa-se no planeta um forte aquecimento dos oceanos em outras regiões além do Oceano Pacífico Tropical, principalmente em grandes trechos que abrangem o Atlântico Norte. Devida à complexidade desta conjuntura climática, que difere consideravelmente do padrão usual, os cientistas alertam que os possíveis desdobramentos do El Niño em curso ainda são desconhecidos.”
Ainda de acordo com a nota, os oceanos Pacífico Norte e Atlântico Tropical apresentam temperaturas acima de 2ºC a 4°C. “Assim, o El Niño de 2023 está ocorrendo em meio a um contexto de elevado aquecimento oceânico em nível global. Ainda não se pode antever como isso afetará os padrões de circulação, e, consequentemente, de secas e chuvas intensas típicos de algumas regiões do Brasil e associados a outros eventos de El Niño”, continua a nota.
O cenário levou um grupo de 70 cientistas a enviar uma nota para deputados da Comissão da Amazônia e dos Povos Originários e Tradicionais pedindo que a Câmara atente para a vulnerabilidade dos povos tradicionais da Amazônia aos fenômenos climáticos e cobre medidas para prevenir e mitigar os impactos iminentes.
Toda essa combinação de eventos, dizem os cientistas, “pode ter consequências imprevisíveis para o clima da Amazônia ao longo de 2023 e 2024, com chances de eventos extremos mais intensos”.
A pesquisadora em Ciências Socioambientais Letícia Lima, da Universitat Autònoma de Barcelona, que coordenou a elaboração da carta aos deputados, lembra que em 2010 ocorreu uma combinação dos dois fenômenos e esta foi considerada uma das piores secas já vistas na Amazônia, tendo superado a de 2005. Agora, diz, o que preocupa é a velocidade das mudanças.
“A combinação é explosiva no sentido de agravar muito a seca. O quanto este evento atual será pior ou mais brando do que eventos anteriores ainda não sabemos. Somente com o desenrolar das condições saberemos. Este ano, nos preocupa especialmente que todos os oceanos estão aquecidos, então não sabemos quais serão as consequências para a Amazônia, mas tememos que sejam crônicas”, disse. “O nível que chegamos de aquecimento nos oceanos não tem precedentes. É imprevisível o que vai acontecer com a Amazônia, porque não vivemos essa condição antes.”
Lima destaca ainda o risco para as populações locais. “A maior parte das comunidades rurais, sobretudo as que estão na parte central e norte da Amazônia, são altamente dependentes da navegação para seu cotidiano, para acessar os centros urbanos e serviços, mercados, além de também usarem a navegação para escoar a produção do extrativismo e atividades agrícolas. Praticamente todo o acesso a serviços de saúde e de educação depende da navegação, mesmo que local ou regional”, lembra a pesquisadora. “O que as secas passadas nos mostraram é que tudo isso fica profundamente prejudicado.”
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